segunda-feira, 7 de junho de 2010

Pais atônitos, filha relutante.

Muitos pais, ao se deparar com um caso de drogas em casa, chegam aos consultórios com a idéia de que o melhor é internar o filho. Mas os especialistas dizem que internação é um recurso extremo e estudos científicos mostram que 85% dos casos são tratados sem necessidade de internação. As clínicas de desintoxicação são indicadas para dependentes que tenham algum problema mental ou psíquico associado, ou quando existe risco de suicídio. Vale também para os casos em que já se tentou de tudo, sem respostas.

O engenheiro Álvaro* e a dona de casa Virgínia*, ambos de 56 anos, sempre acharam que problemas com drogas aconteciam "lá fora, com os outros". Até que, há cinco anos, descobriram que a filha mais velha, Laila*, hoje com 22 anos, usava álcool e maconha diariamente. Foram três meses entre o susto da descoberta e a decisão de internar a filha, então uma adolescente de 17 anos, numa clínica. O tratamento de choque deu resultado. Há quatro anos, a estudante de psicologia Laila está "limpa", jargão usado para aqueles que pararam de se drogar. O episódio acabou unindo a família, reconhece a irmã caçula, Lúcia*, de 19 anos.

Laila – Tenho um perfil de quem é propenso a usar drogas: sempre fui tímida, achava que ninguém gostava de mim. No colegial entrei para a galera que matava aula para ficar no boteco. Bebia cerveja e rabo de galo [pinga com vermute]. Quando enchia a cara me sentia legal, todo mundo virava amigo. Aos 16 anos comecei a fumar maconha com essa turma, mas a droga só fazia efeito quando misturava com álcool.

Virgínia – Há cinco anos, estávamos no nosso sítio, quando ligaram de São Paulo dizendo que Laila estava em coma alcoólico. Foi um choque. Nem sabia que ela bebia.

Álvaro – Entendi como uma coisa da idade. Qual adolescente não tem uma bebedeira? Eu tomava minha cerveja e até oferecia um gole para as meninas. Achava melhor do que elas provarem na rua. O problema é que a Laila foi ficando agressiva...

Lúcia – Ela sempre foi geniosa.

Laila – Quando bebia, era a última a capotar. Não conseguia fazer nada "só um pouquinho". Essa compulsão é outro dado do perfil de quem se vicia. Fiz amizades com uns hippies. Comecei a fumar com eles no fim de semana, depois passei a usar maconha todos os dias.

Álvaro – Ela não nos ouvia mais, tínhamos discussões homéricas por motivos fúteis. Chegamos ao ponto de um não olhar para a cara do outro. Perguntei uma vez se ela usava drogas, ela negou.

Laila – Temos opiniões divergentes em relação a política, a moral. Não me conformava de as pessoas se preocuparem com o preço da batata enquanto existe guerra. A maconha me afastava desse mundo de gente normal, me dava coragem para dizer aos meus pais: "Vocês não mandam em mim!". Quando eles descobriram, eu estava fumando maconha e já tinha provado crack. Não sei como não morri, porque perdi a noção de perigo. Cheguei a ficar à beira de um penhasco, enlouquecida.

Virgínia – A gente via que ela estava diferente, mas não sabia o que fazer, até que encontrei um cigarro de maconha na gaveta do quarto dela no sítio. Fiquei desesperada, saí gritando e ela fugiu correndo.

Laila – Fui para a casa de uma amiga. Meu desespero era que meus pais iam me proibir de sair e de fumar.

Álvaro – Ela nos pegou descalços. Eu achava que problemas com drogas aconteciam lá fora com os outros...

Virgínia – Pensávamos: "Onde erramos?". Criamos as duas do mesmo jeito! Elas tinham palestras sobre drogas na escola, a gente dava a entender que era contra...

Lúcia – Acho que nunca me envolvi porque sou mais medrosa.

Virgínia – Mesmo sem ter experiência nesse assunto, optamos por apoiá-la. Ela não queria conversa, então, apenas dissemos que seria internada e começamos a procurar clínicas nas páginas amarelas. Não dava para pedir ajuda aos amigos, é uma situação muito pesada.

Álvaro – Foram três semanas de discussão. Ela não queria a internação.

Laila – Tínhamos discussões terríveis, com gritos e ofensas, porque meu pai não me deixava mais pôr o pé fora de casa. Ficava furiosa e ele mantinha a calma. Fui me rendendo.

Álvaro – Quando ela aceitou ir para a clínica, também parei de beber.

Laila – Aceitei a internação para eles pararem de me encher. Ao sair da clínica, achariam que eu estava recuperada e eu poderia voltar a beber e fumar. Até pensava: "Jimmy Hendrix se internou", fui para a clínica onde o Raul Seixas se tratou. Estava no meio de um monte de loucos, como eu gostava. Estranhei que tinha horário para tudo, mas fazia terapia e participava das atividades. Fiquei internada três meses e só no último a terapia começou a fazer efeito, quando a crise de abstinência me pegou. Eu ficava irritada, chorava muito, queria socar meu terapeuta.

Virgínia – Aos sábados tinha a reunião de pais, levávamos chocolates, ela nem olhava na nossa cara. Quando lembro disso ainda me dá um nó na garganta.

Laila – Mas não era rejeição, era vergonha de admitir que errei.

Lúcia – Nossa rotina em casa mudou, não existia mais fim de semana. O programa era visitar Laila e participar das reuniões com as famílias dos internos, em que cada um contava uma história mais triste do que a outra.

Virgínia – Ouvir o depoimento dos outros pais nos ajudava a enfrentar a rejeição dela. Foi um período difícil: meu marido tinha perdido o emprego, a diária da clínica era como a de um hotel cinco-estrelas. Ele usou o fundo de garantia, pedimos dinheiro emprestado em banco.

Laila – Como tinha a imagem de uma santa na frente, achei que a instituição era filantrópica. Quando minha mãe me contou quanto eles pagavam, me senti culpada. Com a crise de abstinência, tomei consciência da dependência e minha cabeça começou a mudar. Não queria mais ir embora da clínica, saí chorando. Lá eu me sentia segura. Tinha medo de não conseguir lidar com as pessoas ditas normais e recair. Mas quando reencontrei meus amigos do tempo da maconha, não vi graça. Percebi que só conseguia me relacionar com eles se estivesse bêbada ou drogada. Ainda frenqüentei o Narcóticos Anônimos um ano, mas aos poucos fui me distanciando do universo dos ex-dependentes. Fiz cursinho, entrei na faculdade e me senti bem sem a droga.

Lúcia – Chega uma hora que cansa ficar ouvindo as mesmas histórias, a pessoa tem que encarar a vida real.

Laila – Na faculdade fiz amizades, há oito meses tenho um namorado. Ele bebe a cerveja dele e no começo ficava com um olho no copo e outro em mim. Hoje é mais tranqüilo, mas não me considero recuperada, mesmo quatro anos depois. Não posso baixar um decreto proibindo de se drogarem perto de mim. É doloroso não ter metas. É triste brigar com sua mãe para se drogar, no outro dia ir atrás de droga e brigar com seus pais, no dia seguinte brigar com os pais e ir atrás de droga...

Lúcia – Sem a família o dependente não é nada. Mas para poder ajudar a gente também tem de se perguntar onde errou. Se ela se envolveu com drogas, talvez faltasse mais interação entre nós e nossos pais.

Virgínia – O importante é não abandonar o filho, senão ele afunda mais. Acertamos, mesmo sem experiência.

Álvaro – Todos amadurecemos. A gente vai levando a vida na balada. De repente, a coisa fica séria. A terapia me fez ver que não existem culpados. Pode acontecer em qualquer família. Hoje consigo conversar com minha filha, existe um sentimento ruim em relação ao que passou, mas o maior é de vitória.

* Nomes falsos para preservar a privacidade dos indivíduos.

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